Era uma vez. Não há como fugir ao cliché. A epopeia protagonizada pelo novo campeão inglês é um autêntico conto de fadas. Contra todas as probabilidades e adversidades, as raposas não desistiram e avançaram para a imortalidade. Um feito anacrónico, uma ode ao futebol que põe todo o mundo a sorrir tal como sugere o refrão do hino do Leicester City Football Club. Desde os tempos áureos do Nottingham Forest do saudoso Brian Clough que não se via algo assim em “terras de sua Majestade”.
De candidato à descida a campeão inglês. A proeza é digna de um simulador de futebol, mas o Leicester foi capaz de lutar contra a ideia de utopia e encetou uma caminhada apaixonante. Com o avançar das jornadas, o fenómeno tornou-se global. Kasper Schmeichel, campeão pelos iniciados do Estoril em 2001, seguiu as pisadas do pai e levantou o troféu mais importante do futebol britânico. O virtuosismo de Mahrez (17 golos, 11 assistências), que se transferiu do Le Havre para Leicester por menos de um milhão, passou a colar o Magrebe à televisão. N’Golo Kanté abandonou o segundo escalão francês e a importância na campanha do Leicester valeu-lhe a chamada à seleção principal de França. O instinto de Vardy (22 golos), goleador que há quatro anos atuava na 5ª divisão inglesa e trabalhava numa fábrica de fibra, passou a ser observado por milhões. Albrighton reencontrou a felicidade depois do falecimento da mãe durante o Verão. O poderio físico de Wes Morgan não passou em claro no país em que nasceu Bob Marley, onde se acompanhou meticulosamente o trajeto do primeiro jamaicano a sagrar-se campeão inglês. Claudio Ranieri, o “seleccionador da Grécia que tinha perdido duas vezes diante das Ilhas Faroé”, conquistou o título mais importante da respetiva carreira aos 64 anos.
O Leicester é um baluarte de humildade e competência. Sem vedetismos, compôs um plantel homogéneo, repleto de valores que se pontificaram num coletivo que fica para a história. Os “foxes” foram apenas o 13º terceiro clube que mais investiu – cerca de 37 milhões de libras – dos 20 emblemas que militam na Premier League. Antes da 48ª participação no principal escalão do futebol, três presenças no “top 5” – duas na década de 20 e uma na de 60 – era o melhor que o Leicester tinha conseguido até então. A duas jornadas do fim do campeonato, o Leicester só perdeu três vezes em 36 encontros, tantas quanto o Chelsea, campeão em 2014/15. Curiosamente, José Mourinho abandonou o comando técnico dos “blues” após a derrota (2-1) no King Power Stadium à 16ª jornada.
“Não confio nos apostadores”
A 25ª jornada fica marcada pela vitória (1-3) do Leicester no Etihad, um dos capítulos mais bonitos deste percurso.

Foto: EPA
Pela primeira vez, as casas de apostas consideraram o Leiceste favorito a levantar o troféu da Premier League e Claudio Ranieri foi confrontado pela imprensa com a situação. O técnico italiano foi taxativo: “No início da temporada, diziam que eu ia ser despedido. Não acredito nos apostadores”. Os episódios da sequela “Calma, o Leicester ainda vai cair” foram-se sucedendo e a equipa saiu incólume de sequências de jogos de grande exigência – Manchester United, Swansea, Chelsea, Everton, Liverpool, Manchester City / Tottenham, Stoke City, Liverpool, Manchester City, Arsenal. Um campeão tem que sofrer e o Leicester soube conviver com a ideia. Depois da derrota no Emirates, à 26ª jornada, Claudio Ranieri optou por dar uma semana de férias ao plantel. Nos 10 jogos seguintes, o Leicester venceu sete vezes, empatou três e resistiu à pressão do Tottenham. Falhou o “matchpoint” ao sair de Old Trafford com um empate (1-1) diante do Manchester United, mas o Chelsea – clube que Ranieri treinou entre 2001 e 2004 de uma ajuda e travou os “Spurs”. Ironia das ironias, a imprensa inglesa relata que quando Ranieri abandonou o Chelsea, Roman Abrahmovic proferiu as seguintes palavras na direção do italiano: “Nunca vais ganhar a Premier League”. Quando o apito final soou em Stamford Bridge, Ranieri estava a regressar de Itália, país ao qual se tinha deslocado para almoçar com a mãe. Estava literalmente nas nuvens – primeiro título num escalão principal aos 64 anos. Em casa de Jamie Vardy, soltaram-se os fogos. “Vardy Party” – o conceito fica para a história em alusão à época protagonizada pelo ex-operário fabril que bateu o recorde (11 jogos consecutivos a marcar na Premier League) de Ruud Van Nistelrooy.
Andy, The King
História em movimento. Embora longe da exuberância de Vardy, Mahrez ou Kanté, Andy King garantiu um lugar privilegiado nos pergaminhos do futebol britânico. No Leicester desde 2004, o médio com mais golos na história dos “foxes” é o primeiro atleta a vencer League One (2009), Championship (2014) e Premier League (2016) pelo mesmo clube. Esta temporada foi totalista sete vezes e marcou um golo, no empate a dois com o West Browmich Albion. O Euro 2016 está à porta e é muito provável que integre o lote de convocados da seleção do País de Gales, de regresso à fase final de uma grande competição.
Play-off de emoções
O Leicester regressou ao convívio entre os grandes na temporada 2014/15, depois de se ter sagrado campeão do Championship 2013/14 com 102 (!) pontos. Antes, na temporada 2012/13, o sonho dos “foxes” tinha ficado por cumprir ao cair numa meia-final histórica, diante do Watford.
Segunda mão do “play-off” do Championship 2012/13. Depois de uma vitória por uma bola a zero na primeira mão, o Leicester estava em vantagem no terreno do Watford (2-1). Nos últimos instantes do jogo, Phil Dowd concedeu uma grande penalidade ao Leicester que podia catapultar a equipa para a decisão do “play-off”. Knockaert permitiu a defesa a Almunia a dois tempos, o guarda-redes com passagem anterior pelo Arsenal lançou o contra-ataque e Troy Deeney (ainda capitão dos “Hornets”) concluiu para o 3-1, golo que alterou totalmente o panorama da eliminatória e deixou o Leicester pelo caminho. A desilusão consumiu as ruas da maior cidade da região de East Midlands. Kasper Schmeichel, Wes Morgan, Andy King, Schlupp, Drinkwater e Vardy não queriam acreditar. Viram o sonho de disputar o acesso à Premier League fugir por entre os dedos. Como boas raposas que são, não viraram a cara à luta. Hoje, são obreiros do primeiro título inglês do Leicester City Football Club em 132 anos de história.
Um romance que podia ter sido escrito pela pena de William Shakespeare.
Boas Apostas!