Muitas vezes ouvimos falar da influência do futebol jogado na rua na criatividade de alguns dos grandes nomes do jogo. Até há bem pouco tempo, era quase impossível que um profissional de futebol não tivesse passado, na sua infância, por um processo de desenvolvimento das suas habilidades na rua ou no bairro onde nascera. Normalmente, eram os que se destacam na rua que acabavam por ir fazer os testes aos clubes que, depois, limavam o talento e ensinavam a tática àqueles que viriam a ser os grandes jogadores.

Hoje em dia, estamos perante gerações que não provaram o mesmo processo. Sobretudo em alguns países europeus, tornou-se virtualmente impossível que uma criança encontre na rua o espaço para poder pegar na bola, inventar uma ou duas balizas e criar, a partir daí, o espaço necessário para tentar imitar as grandes estrelas que conhece da televisão. E digo virtualmente porque, na semana passada, em plena capital espanhola, dei de caras com putos a jogar à bola na rua.

O primeiro avistamento foi na Praça de Goya, junto ao Pavilhão dos Desportos. Final da tarde, e entre a quantidade de gente que ocupava o espaço, apareceu uma bola e uma dezena de crianças que cruzava a larga praça, de uma ponta à outra, para fazer o seu imenso campo de futebol. O espanto foi ainda maior porque, passadas umas duas horas, já com muito menos gente na rua, eles por lá continuavam, jogando e travando, apenas, quando o seu campo era atravessado por transeuntes mais distraídos. Olhei em volta e dos altos prédios ainda esperei que alguma mãe pusesse a cabeça fora da janela a chamar a criança para dormir.

No dia seguinte, a inquietação aumentou. À porta do Museu Rainha Sofia, duas crianças usavam uma vetusta e real parede para desenhar a sua baliza, praticando o remate com o sonho de nunca mais falhar uma grande penalidade na sua vida. Entre turistas, despreocupados pais que se sentavam nas esplanadas e algum apaixonado da arte moderna, duas crianças invadiam o espaço público e exigiam que o seu jogo fosse respeitado. Aliás, uma pequena busca na internet provou que esta invasão causa preocupação noutras latitudes. Em Córdoba, está saldado em oitenta euros a multa para quem joga à bola na rua, preço bem mais caro do que ver o polícia a levar-nos a bola, como nos acontecia no passado.

Como alargar a invasão?

Rinus Michaels

Rinus Michaels, um dos inventores do futebol moderno

Na sua tese de licenciatura, datada de 2008, Miguel Ribeiro Moita apontava os casos de Andriy Shevchenko, Michael Owen ou George Hagi como bons exemplos do crescimento da prática na rua. O mesmo autor cita Rinus Michels, que assegura que “o futebol de rua é o sistema educacional mais natural que pode ser encontrado”. No entanto, muitos outros autores notam que o futebol na rua está, nos nossos dias, ameaçado de morte, não só pela concorrência de outras atividades, mas sobretudo pela organização das nossas cidades.

Será, então, este, um problema mais urbanístico do que desportivo? Poderemos culpar algum Presidente de Câmara pelo mal que poderá fazer ao nosso futebol no futuro? As respostas não são fáceis. Se a rua se torna fechada à prática informal do jogo, a verdade é que o alargamento das Escolas e Academias poderia permitir a elevação dos jogos com as mesmas características – pequenos grupos, em espaços reduzidos, com regras informais para a disputa dos mesmos – a um exercício de conquista da técnica e do aprimoramento do processo da tomada de decisão. Mas será o seu caráter informal e o desejo da competição mais organizada por parte dos educadores que influi negativamente naquilo que estas instituições poderiam ser.

Resta-nos alimentar a rebeldia daqueles que ainda se arriscam a levar uma bola debaixo do braço quando saem de casa. Arriscar a esconder alguma placa que anuncie ser “proibido pisar a relva”. Inventar uma rua ou uma praça fechada ao trânsito automóvel, mas aberta aos gritos espontâneos de golo. Em Madrid, pelos vistos, ainda há quem convide os putos a invadir a rua.

Boas Apostas!