O título desta crónica poderia resumir-se a uma única palavra: Privilégio.

Visitar Anfield é, de facto, um enormíssimo privilégio para qualquer adepto de futebol, ou não estivéssemos a falar de um local de culto no que toca ao desporto que move multidões.

Marcámos a visita com uma semana de antecedência, não fosse o diabo tecê-las. Até porque o covil dos diabos ingleses não dista muito de Anfield, uma vez que Manchester se situa a qualquer coisa como 50 km.

Entre as várias indicações que o voucher a apresentar em Anfield continha, importa realçar uma em particular: a obrigatoriedade de apresenta-lo até 15 minutos antes da visita começar, sob pena de não poder viajar ao interior de um dos grandes corações do futebol inglês.

Ao cabo de uma caminhada de cerca de 5 km desde o centro da cidade, com passagem pelo Everton Park – bela vista para a cidade -, finalmente vislumbrámos o destino final.

O plano incluía visita ao museu. Atempadamente, optámos por visitá-lo antes da visita guiada ao estádio. Transportando-o para um dos museus dos três grandes, convenhamos que a sua dimensão ocuparia, provavelmente, pouco mais que uma sala. As várias páginas em que a história do colosso Liverpool Football Club se escreve deixavam antever algo maior. Certo é que o essencial estava lá: as “orelhudas” conquistadas pelos reds, devidamente acompanhadas de material audiovisual que reproduzia as conquistas em loop. Uma delícia para qualquer adepto, claro está, que emocionou, inclusive, um pai que guiava o respetivo filho pela mão.

A pontualidade exigida aos visitantes não acompanhou, estranhamente, o início da visita guiada. Calma: a regra não confirma a exceção e o rigor britânico no que concerne a horários ainda se mantém. As visitas anteriores partiram atempadamente e, mal a guia chegou junto ao grupo das 15 horas, quando já passavam cerca de 10/15 minutos da hora certa, prontificou-se a pedir desculpa pelo atraso enquanto ditava as regras a cumprir ao longo da visita. Repetiu-o várias vezes ao longo de toda a visita. Mesmo quem não estivesse totalmente à vontade com a língua inglesa, rapidamente percebeu que ousar invadir o relvado estava fora de questão, sob pena de detenção.

A visita começou de forma cronologicamente conforme, com a visita ao pilar mais antigo de Anfield. As câmaras começaram a disparar, estávamos no primeiro ponto de paragem da visita mas ninguém queria perder oportunidade de registar o momento. E a visita à sala de imprensa, com as fotos que soam a clichê, ainda nem tinha chegado.

Por cada local que atravessávamos e tinha o estádio como pano de fundo, os guias insistiam: “Ignorem o relvado, temos muito tempo para visitar aquele espaço”. O pedido, esse sim, era ignorado. Uma foto com The Kop ao fundo fica bem de qualquer perspetiva. Quanto mais, melhor.

O Interior da Estrutura

Chegou a vez de entrar no interior da infraestrutura.

O primeiro corredor que atravessámos fez-nos viajar no tempo. Não foi remodelado porque é aquela feição retro que lhe confere singularidade e permite imaginar Ian Rush, por exemplo, a passar por ali.

Liverpool

Uma parte muito importante da história do futebol mundial foi jogado pelo Liverpool e aqui, no Anfield Road

Eis que surge uma porta de acesso à sala onde os jogadores se reúnem antes dos desafios. Aí, é a guia quem lamenta o avançar do tempo: “Antes, esta sala era partilhada por todos os funcionários do clube. Todos tinham acesso. Tanto a empregada que tivesse sido recentemente contratada, como as maiores figuras do plantel principal. Hoje em dia, isso não acontece em lado algum. E este espaço, infelizmente, não é exceção”.

Atravessado o corredor, chegámos, finalmente, à sala de imprensa. As dimensões reduzidas espantam atendendo ao mediatismo que envolve o Liverpool. O guia explica: ali situava-se a antiga bootroom. O espaço não foi alterado e, segundo o próprio, a sala foi pensada a fim de facilitar o trabalho dos operadores de câmara. Naquela disposição, seja como for, os três principais patrocinadores aparecerão sempre como pano de fundo da conferência de imprensa. Brendan Rodgers não estava presente, mas houve quem lhe tomasse o lugar e, inclusive, o imitasse.

Antes de abandonarmos a sala, foi contada a famosa lenda da bootroom. Atribui-se uma maldição à demolição daquele espaço que, no fundo, era um local de comunhão dos antigos treinadores do clube. Antes de seguirmos a visita, o guia pergunta quem quer a bootroom de volta. A resposta é unânime, e até os mais novos exultam com a hipótese.

Chega a vez da visita aos balneários. As camisolas estão dispostas ao longo dos cabides e organizadas como que se de um quadro relativo ao plantel se tratasse: defesas, médios e avançados. Bem no centro, gera-se uma fila. É a camisola do mítico Steven Gerrard e famílias inteiras querem posar junto dela. Mais à direita, um dorsal que nos é particularmente familiar: Markovic, 50. O espaço não é mais que o necessário. A porta tem dimensão reduzida, mas não se pense que é fruto do acaso: o guia explica-nos que foi um pedido de Bill Shankly, advogando que, ao saírem por aquela porta, os jogadores pareceriam maiores na hora de alinhar em formação e intimidariam os adversários.

O balneário contrário é substancialmente mais baixo. É algo claustrofóbico, e claro que também não foi assim feito ao acaso. Durante a visita, estão colocados alguns painéis de cartão com a forma de camisolas em que estão inscritas as histórias de algumas noites europeias épicas vividas em Anfield. Um deles, com a camisola da AS Roma representada, contém uma declaração curiosa. O jogo era relativo à Taça UEFA 2001/02, e o Liverpool precisava de uma vitória por dois golos de diferença para seguir em frente. Venceu por 2-0 e, o técnico adversário, Fábio Capello, proferiu o seguinte a respeito do ambiente criado pelos adeptos do Liverpool: “Parecíamos um guarda-chuva a lutar contra um furacão”.

This Is Anfield

Antes do ponto alto da visita, novo momento de grande êxtase ao posar com a placa This is Anfield, na qual o capitão Steve G. toca religiosamente antes de subir ao relvado. Há quem repita o ritual e filme, caminhando de imediato para o dispositivo móvel para conferir o resultado. De repente, estamos no relvado.

The Kop

Embora com problemas nos últimos anos, o Liverpool anda desde 1892 a fazer história

Mesmo para quem nunca tinha estado em Anfield, o cenário é-nos familiar pelos inúmeros minutos de futebol consumidos com aquele palco ao fundo. Não nos sentimos pequeninos, provavelmente porque falta o essencial naquelas bancadas: os adeptos. De qualquer forma, a ter que ver bancadas vazias, que nunca seja enquanto os onze rapazes de vermelho deambulem pelo campo. Nos bancos, a proximidade entre atletas de ambos os clubes, técnicos e público, é absolutamente impressionante. Incrível por ser um local onde há emoções tão díspares em confronto.

A visita está a acabar. Chegamos à famosa bancada Kop, sentamo-nos, e a guia coloca a voz enquanto toda a gente a ouve atentamente. Enaltece a energia inimaginável daquela bancada cheia, num relato romântico de algumas noites vividas em Anfield. Fala-nos do próximo jogo em que as emoções estarão ao rubro: frente ao blue side of Manchester [Manchester City]. E claro, convida-nos a estar presentes num dos próximos jogos para ter a sensação única de ouvir as bancadas entoarem o famoso You’ll Never Walk Alone.

No final, pergunta-nos de onde viajámos. Dizemos que somos portugueses, e de imediato fala em Eusébio e Mourinho. Com o técnico, por razões óbvias, não simpatiza tanto. Ao recordar Eusébio, fala-nos de um episódio que aconteceu em 2009. “Não era apenas um extraordinário jogador, era também uma grande pessoa”, começa. Conta-nos que quando o Benfica visitou Anfield em jogo da Liga Europa, encontrava-se no camarote. Eusébio chegou e foi extremamente bem tratado. Após o término do encontro, tira do bolso o convite para o mesmo, assina-o e entrega à senhora que, emocionada, nos relatava o episódio. Admite que não conseguiu conter as lágrimas, e que é um momento que guardará para toda a vida.

Estranhámos apenas a ausência de visita integrada ao memorial das vítimas de Hillsborough, outro local simbólico para os adeptos reds. No entanto, note-se que, mesmo no centro da cidade, existe um monumento que recorda aos 96 vidas que se perderam num dos mais trágicos episódios da história do futebol britânico. Apaixonante.

Boas Apostas!